37º Encontro Anual da ANPOCS
Simpósio Temático n° 3 - De cidades à cidade nas ciências sociais brasileiras
Aonde ninguém é Zé Ninguém: a experiência citadina na pequena cidade, a
notoriedade compartilhada e suas as repercussões sobre um modo de vida
"urbano"
Manuela Vieira Blanc1
Águas de Lindoia
Setembro de 2013
1
Doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Introdução
É sobretudo a velocidade dos fluxos, e a forma como tais fluxos são assimilados,
o que diferencia o modo de vida metropolitano de qualquer outro, bem como os seus
impactos sobre notáveis e desconhecidos. Se a intensidade dos estímulos contribui para o
desenvolvimento de uma forma de reserva2 e de indiscriminação, os Zé Ninguéns
representam o protótipo da condição de irrelevância do ser experimentada pelos
citadinos. Os notáveis correspondem, por outro lado, aos sujeitos diferenciados no mar de
rostos anônimos e que, estes sim, são objeto de atenção, curiosidade e dotados de uma
reputação que é parte de uma espécie de opinião pública nos termos de Tarde (1992).
São múltiplas as formas de se experimentar o anonimato e impessoalidade citadina,
variando abstratamente entre uma condição de notoriedade generalizada e a
ordinariedade da existência, o que se reflete, por outro lado, em diferentes graus de
mobilidade entre diferentes mundos sociais e, portanto, em diferentes formas de se
experimentar o urbano.
A peculiaridade da experiência citadina como reflexo de uma condição de
anonimato, proposta por George Simmel (1979) como típica ao contexto metropolitano,
foi problematizada por Antônio Machado da Silva e Gilberto Velho (1977) por seu
caráter apenas relativo e agora é repensada através de uma experiência de estranhamento
do familiar 3. Enquanto a alta densidade demográfica, a expansão geográfica e a grande
intensidade de fluxos e interações se estabelecem como elementos típicos a uma forma de
conubarção urbana, fundindo não apenas física como também socialmente grandes zonas
político geográficas (como sabiamente o aponta Wirth, 1979), o “excesso de espaço”, a
baixa densidade populacional, parecem implicar em uma espécie conurbação subjetiva.
Instaura-se nestes casos uma realidade em que as múltiplas situações sociais se
comunicam e interpenetram, limitando a possibilidade de estabelecimento de relações
indexicais (GARFINKEL, 2007) e, portanto, de experimentação de diferentes faces de si
mesmo e diferentes formas de relacionar-se entre si.
Mais do que pensar a vivência em uma cidade de pequeno porte, ou questioná-la
enquanto um modo de vida passível de ser classificado como "urbano", segundo os
moldes traçados pelos pesquisadores do Departamento de Sociologia da "Escola de
2
3
Assim como desenvolveu George Simmel em A metrópole e a vida mental (1979).
Ver Velho (1978).
Chicago", pretende-se repensar os pressupostos a partir dos quais o urbano se delimitou
como um específico contexto de análise. A resposta sobre em que implica a experiência
citadina está em aberto. Assim também, as dimensões públicas e privadas, fundamentais
para se pensar o espaço público urbano, são objeto de reflexão.
É a partir dos complexos arranjos estabelecidos entre mundos sociais em
coexistência que inferem sobre uma dada situação social que a análise aqui se
desenvolve. Mais do que a condição de notoriedade ou anonimato, é o caráter relacional
entre uma experiência e outra que inferem sobre a construção dos modos de vida e de
percepções de si. Mais do que a amplitude dos contextos, é a dinâmica das relações
estabelecidas entre os sujeitos, consigo mesmos ou com o seu entorno (de caráter ao
mesmo tempo objetivo e subjetivo) que podem contribuir para se pensar a condição
humana em meio urbano. Da mesma forma, uma coisa é viver na cidade, outra coisa é
experimentar as cidades em que se vive.
O conceito de região moral4 contribui neste sentido para se pensar no
estabelecimento de ilhas resguardadas de desenvolvimento pessoal e, finalmente, para
problematizar a relação entre a sobrevalorização da autonomia e personalidade
individuais (pressuposta por Simmel como típica aos contextos de proeminência de uma
cultura subjetiva) e as condições do seu desenvolvimento. A condição de anonimato é
confrontada, portanto, com aquela de notoriedade, em que toda individualidade é objeto
de atenção e todo comportamento face a face é potencialmente revertido em uma forma
de exposição e de construção de uma imagem pública dos sujeitos.
Até que ponto um contexto de proeminência de uma cultura subjetiva não pode se
reverter em situações de co-presença objetivamente imperativas, justamente porque
diretamente inter-relacionadas entre si? É através destes questionamentos que se
desenvolve esta proposta de discussão e, quem sabe, se pode avançar na apreensão das
experiências humanas em meio “urbano”.
Partindo de um olhar sobre a vida na “cidade” centrado nos aspectos cognitivos
deste espaço de sociação, proponho remontar a variabilidade das formas sociais passíveis
de emergir em diferentes contextos ecológicos. A diversidade das situações sociais, bem
como o caráter autorreferido com que estas se redefinem continuamente, demonstra a
fragilidade de se pensar o urbano como um contexto estritamente impessoal. Ao mesmo
4
Desenvolvido por Robert Park, 1973.
tempo o caráter relativo com que se estabelece a condição de anonimato (aqui polarizada
a condição de notoriedade), bem como as diferentes apropriações dos espaços públicos,
aponta para a flexibilidade das fronteiras entre o público e o privado. Finalmente, o
urbano se mostra em toda a sua complexidade, simbolizada por um estudo de caso que
evidencia finalmente as aproximações situacionais entre contextos aparentemente
dissonantes. Uma vez centrada nas relações face a face a análise do urbano possibilita
desmistificar o próprio citadino em suas múltiplas experiências.
Um estudo de caso sobre os casos possíveis
Os modos de conduta pública são referenciais centrais à caracterização do
contexto urbano de sociação segundo diferentes autores. É a atitude blasé fundamentada
por George Simmel (1979), ou o regime de desatenção civil nos termos de Erving
Goffman (2010), que caracteriza a forma como os sujeitos se posicionam em situações
sociais definidas pela co-presença de anônimos. Seja tal atitude percebida como uma
barreira de proteção ao excesso de estímulos cognitivos ou como um modo de conduta
civil(izado) de garantia ao direito à reserva ao outro, estes comportamentos tendem a
serem destacados como definidores de um comportamento em lugares públicos. Mas e
quando os comportamentos em lugares públicos se definem por uma alta discriminação
dos atores em co-presença e posicionamentos caracterizados por modos de exposição
pública?
Partimos de um caso limite, expressão aparentemente inversa à grande metrópole
simmeliana, e para apropriações do espaço público como contexto de personalização das
relações. O que ele evidencia, finalmente, é a fragilidade das polarizações entre
diferentes ajuntamentos humanos no que se refere ao seu caráter público ou privado, em
consonância com indicações do próprio Goffman (2010) quanto às situações face a face.
A fragilidade das fronteiras entre diferentes situações de co-presença conferem destaque
para as diferentes gradações passíveis de serem observadas nestes contextos entre o
estabelecimento de relações face a face e o exercício de uma espécie de desatenção civil.
٭ ٭ ٭
A voltinha. Avista-se a praça e poucos são os rostos estranhos. Ou nenhum.
Inicia-se uma voltinha de carro cuja velocidade é alternada de acordo com os espaços
percorridos. Diante da proximidade dos estabelecimentos de lazer, o pé abandona
lentamente o acelerador e iniciam-se as trocas de olhares entre transeuntes. O desafio é
manter o equilíbrio entre a embreagem e o freio. Vê-se muita gente, fica a sensação de
que se viu alguém, talvez a vontade de se exibir mais um pouco: a galera está aí! Mais
uma esticadinha bem leve e, sim, ao passar o local, retoma-se a aceleração com maior ou
menor ímpeto, de acordo com o quanto se deseja chamar a atenção.
A rua é apenas a via por onde desenhamos as nossas rotas, deserta e passível de
reapropriações tão logo nos afastamos dos bares. Mais uma voltinha, mais uma semi
paradinha, só que agora com um ar mais blasé. Troca de olhares apenas indireta, ar
supostamente desinteressado... Buscamos um lugar para estacionar ou decidimos seguir
em frente. Pelo menos por enquanto.
Repetir o ritual em diferentes pontos da cidade, ou mesmo das cidades vizinhas, é
demarcar presença, uma estratégia de reivindicação da preservação da autonomia e
individualidade da existência em si mesma5. Esta pode se estender a diferentes círculos,
mesclando em seu percurso a circulação por espaços públicos e áreas residenciais, ao
mesmo tempo responde a um circuito básico demarcado por pontos de convergência
específicos e sócio historicamente delimitados. São diferentes níveis de proximidade e
distância que incidem sobre as diferenciações entre os traçados urbanos, variando entre
grupos, horários, períodos do ano e dias da semana. Estes compartilham a Rua como área
de encontro, foco de interesse ou ponto final. É a Rua a categoria que remete aos pontos
de sociabilidade a partir dos quais se estabelecem os percursos. A Rua simboliza os
espaços públicos nos quais é necessário se fazer ver, dispensando horas marcadas ou
endereços. Dar uma voltinha na rua é inserir-se na situação, existir socialmente.
A chegada. Caminhando em direção ao point, roupa bem alinhada, salto firme no
pé. Passos largos pra quem está só, mãos dadas pra quem está acompanhado. É
necessário causar. Causar impressão, expor as fachadas. As chegadas ritualizam a
demarcação das individualidades, o cultivo e preservação das personalidades; se
caracterizam,
portanto,
como
posicionamentos.
5
Parafraseando Simmel, 1979: 11.
um
processo
relacional
de
ordenamento
dos
O ar desinteressado de quem não procura por nada é o modo de conduta pública
através do qual são operadas as aproximações, os encontros devendo transcorrer com a
suposta naturalidade da autossuficiência: quando possivelmente marcados, tomam o ar de
coincidência, mas livre de surpresas.
O você por aqui? não faz sentido quando aqui é exatamente o único lugar em que
se poderia estar (senão de fato, na realidade da vida cotidiana). Quem não está não
existe, insistir em chamar é interpelar a vida. Encontrou e sentou: tá com a galera. A
partir desta sequência da situação a presença já foi declarada, os reconhecimentos
devidamente finalizados. Por enquanto. Não é necessário cumprimentar ninguém, por
mais que todos se conheçam e não tenham dormido juntos. Então se finge que não viu e
vai reparando de relance.
Todos os fluxos apontam para a superficialidade do desinteresse aparente, para
uma encenação da desatenção como procedimento basilar ao mútuo reconhecimento. A
reserva não se sustenta na incapacidade de discriminar, como se pode perceber, mas em
um procedimento objetivo de discriminação subjetiva. A ausência de cumprimentos
generalizados, mesmo em situações de reconhecimento generalizáveis entre atores em
co-presença (apesar de variantes em profundidade), evidencia a formalidade da
aproximação e, finalmente, a objetividade dos conteúdos.
As performances. Entrar e sair é ritualizar, cada etapa do percurso simbolizada
por uma nova chegada reencenando o ato triunfal. São várias exibições em uma só noite,
garantindo ao público que chegou atrasado a emoção de assistir a entrada dos atores em
cena. Entre um espetáculo e outro, uma voltinha por aí. O afastamento e reaproximação
conferem destaque para aquilo que se faz quando não se está sendo visto, tornando cada
saída de cena a cena principal. Quem decide permanecer parado se movimenta através
dos demais. Quem foi, quem voltou, quem falou, a quem beijou, quem bebe, quem come,
quem vai ao banheiro... A circulação no espaço de sociabilidade é a ação que lhe dota de
sentido e apenas um fragmento do percurso mais amplo que justifica as saídas e retornos:
a própria voltinha.
As idas e retornos aos estabelecimentos de lazer, as voltinhas durante a noitada,
bem como a voltinha que categoriza a própria noitada em muitos casos (o dar uma
voltinha na Rua se apresentando como uma atividade de entretenimento em si mesma e
ao mesmo tempo articulada a outras tantas) são formas de causar. Reencenações da
inserção dos atores em determinada cena, da delimitação de suas fachadas, ritualizações
em certos casos insistentemente repetidas, como em uma tentativa desesperada de se
fazer conhecer (ou reconhecer).
Desde a troca de olhares anterior à descida do carro (seja para aquele que vem ou
para aquele que lá já está) até o aparente desinteresse entre atores em co-presença e,
sobretudo, passando pela centralidade das saídas seguidas pela reencenação das
chegadas, essas sequências de situações simbolizam formas de exibição pública. A
desatenção aparente, mais do que um modo impessoal de operar em dada situação,
assenta-se em um modo de reserva como procedimento de atenção mútua.
A descrição acima se baseia em dados de observação participante coletados em
uma cidade de pequeno porte6 na Região Noroeste do Estado do Rio de Janeiro, mas o
que apresenta de específico em muito nos reenvia a tantos outros contextos quantas
situações de sociabilidade possa haver. Os dados apontam, finalmente, para o caráter
relacional e, portanto, apenas relativo, com que se conjugam diferentes níveis de
proximidade e distância, anonimato e notoriedade.
Apreendidos como espaços públicos de co-presença estes contextos de
sociabilidade acabam por mesclar diferentes gradações entre condutas, variando entre a
desatenção civil e a ação recíproca, ou relação face a face. As performances evidenciam
como a impessoalidade se apresenta como um procedimento apenas superficial, a
indiscriminação se constituindo como uma estratégia de autovalorização daquele que
deseja se impor e exige o reconhecimento da sua existência: a atitude blasée assumindo
ares de uma competência de afastamento em um contexto de alta proximidade. Mas os
instrumentos em favor de tal empreitada são tão mais eficazes quanto menos evidentes.
A impessoalidade é o instrumental a partir do qual as personalidades individuais
buscam se diferenciar no espaço público, contexto ecológico potencialmente favorável ao
cultivo de si.
As performances remetem a adesões, a redes de relações ou sociabilidade
específicas dotadas também de códigos específicos. E assim se diferenciam os
posicionamentos. O contexto é reapropriado por esses diferentes grupos, ajuntamentos
estes cujas fronteiras são fluidas por definição.
A reserva neste caso é garantida superficialmente pelos olhares indiretos. No fim
das contas, só passam despercebidas as presenças menos relevantes para determinados
6
Refiro-me às dimensões populacionais: 10.230 habitantes, segundo o IBGE, 2010.
atores, condição esta necessariamente relacional. Entre conhecidos o estar lá é
significativo. Para os atores em co-presença as performances mais destacadas conferem
notoriedade aos atores individuais. Causar, ou aparecer, categorias nativas relativas ao
ato de chamar a atenção7, é um ato performático acionado no exato instante em que se
chega, ou simplesmente passa de carro, moto ou mesmo a pé. E as diferentes estratégias
de ritualização da presença evidenciam ser este ato parte de um projeto de
reconhecimento e diferenciação. Assim são supervalorizadas as fachadas8 pessoais e se
justificam saltos plataforma, maquiagens carregadas, carros de som, altos tons de voz,
roupas de marca e etc., para uma simples soirée com os amigos, um pedaço de pizza ou
dois chopes.
A desatenção civil demonstra o seu potencial como uma conduta adequada à
construção de uma reputação pública9. Ela é o procedimento através do qual se
estabelecem formas de notoriedade compartilhadas. Por fim, os espaços públicos de
sociabilidade aqui descritos são reapropriados como um contexto público de
estabelecimento de relações face a face, subvertendo finalmente a própria fronteira entre
o público e o privado.
De que família você é? Urbanidades personalistas, mobilidades circunscritas
Paralelamente aos contatos entre conhecidos, observam-se as deferências com
relação aos desconhecidos. A descrição dos processos de inserção dos atores nas
situações exemplificadas pelas sequências acima nos permite apreender como o espaço
público de sociabilidade se constitui como contexto de cultivo de si em potencial.
Igualmente, os elementos subjetivos presentes na definição de tais situações sociais
incidem sobre os modos de conduta pública e vice-versa.
Bem como a proximidade (objetiva e subjetiva) dos atores que partilham de dado
contexto de sociação se traduz em um comportamento reservado, no hábito ordinário de
não cumprimentar pessoas conhecidas ou fazê-lo apenas de forma discreta e
(aparentemente) desinteressada, a presença de estrangeiros é objeto de uma atenção não
7
Perfeitamente aplicável a outros contextos ou situações sociais.
Ver Goffman, 1975.
9
Segundo termo de Tarde, 1992.
8
dissimulada. Tal categoria finalmente é passível de ser aplicada tanto aos desconhecidos
propriamente ditos quanto aos pouco conhecidos, referindo-se a todos aqueles que são
considerados outsiders10 em dado contexto de sociação. O desconhecimento mútuo
apresenta, portanto, diferentes níveis que remontam ao grau de distanciamento entre os
atores, os “desconhecidos”, ou pouco conhecidos, se assimilando em determinados
aspectos. É interessante observar, por outro lado, como a extraordinariedade se traduz em
uma condição de notoriedade, sendo dotada, portanto, de um caráter subjetivo. Ser um Zé
Ninguém, um anônimo, é ser objeto de discriminação, sobretudo em situações sociais
marcadas por uma alta pessoalidade.
O distanciamento reflete-se desta forma em uma sobrevalorização da presença,
por um lado, mas que está relacionada a uma balança de reserva, por outro. As atenções
se voltam para ele e este interlocutor extraordinário (seja estrangeiro ou pouco frequente
em dado contexto de sociação) é interpelado a se posicionar.
Se o exercício da atitude blasée entre conhecidos é um empreendimento em favor
da reserva, equilibrando a balança da alta pessoalidade com um modo de conduta pública
relativamente impessoal, a recepção dos pouco (senão nada) conhecidos é também um
modo de superar um distanciamento que vai de encontro com dada definição da situação.
Assim também se delineia o incômodo provocado pela presença do estrangeiro: ele a
redefine devido a sua incapacidade de corresponder reciprocamente às ações.
É de fundamental importância destacar que tal incompetência é reflexa do
distanciamento subjetivo deste com relação aos demais, mais do que do não compartilhar
de hábitos e modos de vida de uma forma geral. Não é suficiente compartilhar de códigos
morais se não se é capaz de corresponder às situações que, em um contexto de alta
pessoalidade, pressupõe uma proximidade subjetiva que se estabelece através das
relações cotidianas. A notoriedade alcançada a partir da condição de estrangeiro incide
sobre uma extraordinariedade da existência individual e, portanto, em uma subjetivação
de tal existência. Ao mesmo tempo tal subjetivação, apreendida como reconhecimento da
existência do outro, se processa a partir de uma imperatividade relativamente objetiva.
A condição impessoal de anonimato experimentada por tais citadinos em dadas
situações sociais é o motor ao processo discriminatório, bem como objeto de uma
demanda por posicionamento. Nestas situações dá-se início à busca por referencias que,
10
Ver BECKER, 2008.
baseados em um repertório compartilhado, permitem o reconhecimento deste outro, ou ao
menos o refinamento da sua categorização.
De qual família você é? O questionamento é um esforço de enquadramento, uma
tentativa de adequação do outro (cujo caráter anônimo é anunciado pela própria
interpelação) a uma lógica de sociação específica.
A proposição da pergunta é demonstrativa do modo como a condição de
anonimato dá lugar a uma forma compartilhada de notoriedade, caracterizada por cadeias
de reputação que se estendem entre conhecidos e afiliados. Ser alguém, ter a
individualidade da sua existência reconhecida, perpassa a construção de uma reputação
pública, nos termos de Tarde (1992). Assim como o conceito de identidade, tal como o
definido por Hall (2005), esta reputação se constrói socialmente, sendo portanto fluida,
histórica e contextualmente delimitada. É interessante observar, portanto, como tais
referenciais são capazes de se antecipar ao estabelecimento de relações face a face a
partir do acúmulo de certa dose de conhecimento mútuo.
O questionamento exemplifica a forma como se constituem as cadeias de
reputação, o grupo incidindo sobre o sujeito. As redes de parentesco são assim destacadas
como importantes referenciais pessoais; núcleos a partir do qual se dá a construção das
reputações individuais e, portanto, elemento identitário altamente valorizado nos
processos de apresentação de si. A genealogia é destacada como um código de
classificação moral especialmente significativo no contato com o outro desconhecido, ou
em processo de reconhecimento.
As cadeias de reputações se estendem em direção às redes de parentesco, se
apresentando como elementos classificatórios gerais. Através da genealogia da inserção
em dada situação (neste caso a presença em um contexto de alta pessoalidade) se
fundamentam os posicionamentos assumidos durante o estabelecimento de relações
indexicais11. Ser da família X, ou amigo de fulano X (membro da família X, portanto) é
inserir-se socialmente a partir de um quadro de referência compartilhado.
11
Segundo Garfinkel (2007), a realidade social é constantemente criada pelos atores em relação, não é um
dado preexistente, mas situações de interação, envolvendo capacidades reflexivas e interpretativas. Desta
forma, as expressões indexicais e as ações indexicais têm por propriedade serem ordenadas
processualmente. Tanto como processo quanto como realização, a racionalidade produzida nas expressões
indexicais revela segundo o autor as tarefas práticas que são sujeitas a todas as exigências de uma conduta
organizacionalmente situada. Entende-se indexicais por autorreferidas, ou referidas a um contexto
dialógico específico, em contraposição a um aparato normativo em torno de comportamentos, significados,
etc.
Ah, sim! O reconhecimento da individualidade da existência se dá por herança de
reputação, mesmo que tal elemento de identificação assuma um caráter provisório. Este
implica em um reconhecimento da reputação pública da cadeia de ao qual este outro é
passível de ser filiado. Da mesma forma, os referenciais partem de uma tentativa de
reconstituição genealógica se estendendo até às redes de compadrio (ambas passíveis de
equalização – o compadrio podendo ser percebido como um elo de parentesco), amizade
ou mero conhecimento. A razão de estar (por visita a um familiar, amigo ou por
indicação de um conhecido) assim se traduz em um vínculo de proximidade: o
conhecimento por assimilação. A satisfação diante de resultados bem sucedidos refere-se
menos à valorização da reputação (se é bom ou mal para o outro estar afiliado a dada
cadeia) do que da aplicação do próprio procedimento. Categorizar, desta forma, é um fim
em si mesmo, uma estratégia de adequação moral, o primeiro elemento de identificação,
elo primário de afinidade.
Os pertencimentos são capazes de garantir posicionamentos, mais ou menos
valorados de acordo com a reputação das cadeias, reputação esta que se refere ao seu
grau de notoriedade. A hierarquização entre sobrenomes remete à posição social das
famílias. Por outro lado, a tradicionalidade de dada cadeia de reputação transcende os
referenciais objetivos em torno dos status adquiridos (baseados em parâmetros
econômicos, por exemplo), se referindo, finalmente, a uma imagem de si (nesse caso da
“família” como cadeia de reputação) efetivada em dada situação. Dado que o
conhecimento mútuo é a razão de ser de tal empreendimento de enquadramento moral, a
filiação a uma cadeia de reputação dotada de grande notoriedade, mesmo que de uma
“má reputação”, se sobressai na hierarquia de valores a qualquer outro referencial de
classificação.
A notoriedade reflete o grau de conhecimento mútuo atingido por determinada
família enquanto cadeia de reputação. Ser mais conhecido, portanto, torna determinados
grupos mais efetivos do que outros como referencial categórico aos seus membros. Tratase de uma fachada propriamente dita, um elemento primário de apresentação do eu12.
Pertencer a uma família desconhecida é não ter uma reputação a apresentar no
estabelecimento de relações indexicais, é assumir uma condição de ordinariedade que só
12
Em referência a Goffman, 1975.
pode ser superada no decorrer das relações face a face, implicando em uma condição
potencial de instabilidade e incerteza.
Finalmente, as “reputações” são construídas em relação desde posicionamentos
assumidos por seus membros em contextos de sociação até os grupos e vice-versa. A
reputação em cadeia e as reputações individuais se estabelecem em processos contínuos
de ajustamento. Ao mesmo tempo, aos Zé Ninguéns, aos ordinários sem reputação (ou
cuja cadeia de reputação não lhes garante o reconhecimento mútuo em dada situação) se
ampliam as possibilidades de trânsito moral. O mesmo procedimento que garante uma
condição de relativa estabilidade no estabelecimento de relações face a face – a reputação
– incide sobre um ordenamento das condutas em resposta às expectativas geradas a partir
de um determinado referencial: a própria “reputação”.
A condição relativa de notoriedade ou anonimato incide sobre a construção das
fachadas individuais, em uma hierarquização dos atores em co-presença, bem como em
diferentes apropriações dos espaços públicos de sociação. A condição citadina demonstra
a sua complexidade quando o foco recai sobre a definição das situações. Em situações de
alta pessoalidade o grau de notoriedade dos atores em co-presença, ou a efetividade das
suas fachadas como elemento de diferenciação, lhes garante um posicionamento
diferenciado porque digno de discriminação. A centralidade da condição de notoriedade
como referencial a um posicionamento dos atores, pautado por sua vez no
estabelecimento de um conhecimento mútuo, evidencia a proeminência de relações
subjetivas em tal contexto de sociação.
A notoriedade compartilhada incide sobre a definição das situações porque o
procedimento de discriminação é inerente ao estabelecimento das relações, mesmo em
caráter indexical. O contexto de alta pessoalidade se define, portanto, pelo grau subjetivo
com que está ordenado. Ao mesmo tempo essa cultura subjetiva simbolizada pelo
estabelecimento de cadeias de reputação compartilhadas em diferentes níveis pelos atores
em co-presença sinaliza para referenciais objetivos que incidem sobre a definição das
fachadas pessoais e, finalmente, os posicionamentos dos atores.
O que interessa demonstrar, finalmente são os procedimentos a partir dos quais a
notoriedade se efetiva e as suas consequência para a definição das situações. Uma vez
que a notoriedade se concretiza como referencial ao posicionamento dos atores segundo
um modo de conduta peculiar, implica em um fenômeno de interposição entre diferentes
situações sociais e, portanto, relações face a face. O caráter potencialmente
discriminatório dos atores em copresença é condicionado ao grau de conhecimento
mútuo propiciado por suas reputações públicas, os posicionamentos assumidos em dada
situação se remetendo aos referenciais objetivos com que se estabelecem as suas
fachadas pessoais. Levando-se em consideração que tais reputações se constroem
socialmente, e que estão dotadas de um caráter relativamente fluido, o caráter relacional
com que são acionadas é limitado pelos aspectos objetivos com que se concretizam.
Uma vez notável este citadino tem a individualidade da sua existência
reconhecida em diferentes contextos de sociação, variando em grau, certamente, mas em
correspondência com um modo de conduta pública pessoalizado. Ao estabelecer relações
face a face como um notório, um conhecido, ele apresenta uma fachada que é prévia a
ação recíproca empreendida, assim como a cultiva durante este processo situado de
sociação. Desta feita, pode-se observar como as situações sociais se interpenetram, tendo
como elemento de transposição do caráter autorreferido dos ajuntamentos o
conhecimento mútuo que lhe é prévio. A sua definição não está dada em si mesma, sendo
também estabelecida a partir de elementos que lhes são exteriores.
Finalmente, mas não menos significativamente, observa-se através dos processos
de efetivação das reputações, seja no nível das cadeias, seja no nível dos atores em copresença, como os posicionamentos assumidos situacionalmente inferem sobre
ajustamentos desta imagem de si que os extravasa, incidindo sobre as mobilidades dos
atores.
O potencial de mobilidade do citadino entre diferentes meios sociais está
condicionado a sua condição de anonimato, garantindo a indexicalidade dos contatos face
a face, bem como o cultivo de si em diferentes contextos de sociação. Assim lhe é
possível exercitar uma maior liberdade de direcionamento dado que o seu
posicionamento em diferentes situações sociais se define no processo de estabelecimento
das relações. Tal “liberdade” se refere ao caráter situacional dos posicionamentos
assumidos e que está sujeita a uma relativa autonomia entre as diferentes situações de copresença.
Uma vez interconectadas as situações sociais, neste caso pelo compartilhar de
uma reputação pública, são transpostas as fronteiras entre diferentes meios sociais. A
notoriedade não é estabelecida no contexto de sociação, apesar de nele se efetivar. O
cultivo de si se confunde, desta forma, com o cultivo de uma imagem do eu que se dá
através do cultivo de um conhecimento mútuo, este referenciado por cadeias de
reputação. Os pertencimentos participam da construção das fachadas e conferem
destaque para a individualidade das existências, ao mesmo tempo ordenam os
posicionamentos, redefinindo as situações (ou ao menos o seu caráter indexical). Como
elementos de valorização das personalidades individuais estes pertencimentos se
traduzem em mobilidades circunscritas justamente por que embasadas em referenciais
que lhes extravasam.
Tais considerações vão ao encontro de uma compreensão da condição de
anonimato por seu caráter apenas relativo, assim como o destacado por Velho e Machado
da Silva (1977), demonstrando a complexidade em se pensar a experiência citadina. Os
dados obtidos através da observação flutuante (PÉTONNET, 2009) de formas de
sociabilidade em uma cidade de pequeno porte (no que se refere às dimensões objetivas
de tal contexto urbano) nos reenviam às situações sociais definidas a partir de uma alta
pessoalidade. Assim também se observam evidencias quanto à complexidade dos
arranjos entre elementos objetivos e subjetivos coexistentes nestes processos de sociação,
bem como as consequências para a mobilidade dos atores entre diferentes meios sociais.
Considerações finais: O urbano como categoria versus o urbano como contexto
ecológico
O contexto urbano se caracteriza, segundo George Simmel (1979), pela
proeminência de uma cultura objetiva sobre a cultura subjetiva, a impessoalidade
correspondendo ao modo de conduta pública típico a tal contexto. O cultivo de si, por
outro lado, dá-se a partir do estabelecimento de grupos de sociabilidade. A velocidade
dos estímulos incide sobre as capacidades cognitivas dos atores em co-presença. Ao
mesmo tempo, o estabelecimento de ações recíprocas sinaliza para uma apropriação do
espaço público, apreendido simplesmente como espaço de co-presença em sentido amplo
(segundo definição de Goffman, 2010), em favor do desenvolvimento de relações face a
face.
Qualquer definição de espaço público, neste sentido, se esvazia de sentido se
levada em consideração uma perspectiva situacional. As inter-relações entre culturas
subjetiva e objetiva incidem sobre arranjos dados na definição da própria situação e que
ao mesmo tempo se referenciam e incidem sobre pressupostos que lhes extravazam.
Observamos acima como em um contexto de alta pessoalidade estabelece-se um modo de
conduta igualmente marcado por certa dose de desatenção civil, demonstração de reserva
em favor da valorização individual e que está pautada em um dado modo de conduta
pública. Estes são os elementos objetivos que participam da ordenação de uma sequência
de situações sociais, mas que não estão isentos de aspectos subjetivos. Ao mesmo tempo,
tal civilidade não é um pressuposto à impessoalidade ou vice-versa.
A experiência citadina é tão complexa quanto o próprio contexto urbano,
assumindo características cuja peculiaridade está dada na definição das situações. Ao
mesmo tempo a indexicalidade dos encontros face a face transmuta para as relações
recíprocas referenciais que as extravasam sem com isso nos circunscrever a uma
perspectiva atomista. A subjetividade como conteúdo que emerge da própria forma social
se fundamenta em processos de ajustamento a uma cultura objetiva é também produto de
processos recíprocos de sociação.
A reserva entre os atores em co-presença nos espaços públicos de sociação é a
superfície na qual se resguardam diferentes níveis de conhecimento mútuo e ocultação
recíproca (SIMMEL, 2009). Conhecimento apreendido como reconhecimento da
existência de outrem e que está ele mesmo dotado de aspectos ocultos, não revelados. A
forma como tais procedimentos de distanciamento, bem como de aproximação, são
empreendidos reflete finalmente as definições da situação.
Para Simmel, o segredo constitui uma das maiores conquistas da humanidade, ele
oferece, por assim dizer, a possibilidade de que surja um segundo mundo junto ao
mundo patente e de que este sofra a influência do outro (2009: 235). Desta forma, a
relatividade com que se estabelecem diferentes níveis de notoriedade ou anonimato
implica em graus proporcionalmente variantes de distanciamento e proximidade. A
reserva, ou a atitude blasée, demonstra a sua centralidade como modo de conduta pública
cujo sentido ou modus operandi responde às formas sociais elas mesmas, variando,
portanto, como estratégia de dissimulação discriminatória ou de defesa cognitiva.
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