ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES DA CARRAPETA
(GUAREA GUIDONIA (L.) SLEUMER) EM FLORESTAS DE
ENCOSTA DO RIO DE JANEIRO
1
Rogério Ribeiro de Oliveira
1
Alexandro Solórzano
1
Gabriel Paes da Silva Sales
2
Mariana Beauclair
3
Rita Scheel-Ybert
Abstract
Guarea guidonia (L.) Sleumer is a common species that occurs in early and late
secondary forests of the Pedra Branca Massif, RJ. We used in this study nine
transects comprising a total of 1.35 ha. We made an anthracological survey in a
60-ys-old regenerating forest, in a former charcoal kiln (from early twentieth
century) using plots of 0.04 m². Depending on its successional age, basal area
ranged between 12.3 and 90.1 m²/ha. The anthracological analysis that was
made in an area where the species is currently dominant showed that the
process of charcoal production that happened about 60 years ago caused a
great reduction in the diversity of other species and increased density of G.
Guidonia. Its recruitment was only observed in the area of 5 years. It is a
pioneer species that rarely germinates in natural gaps. The species has a
preference for moist environments (bottom of valleys) and only recruits in full
sunlight condition or with the opening of large gaps (such as for charcoal
production). The specimens found in areas of late successional stages have
decreased density and increased dominance due to former uses of the forest.
As a long-aged species (reaching over 150 years) it can contribute to locate and
map areas from the mid-nineteenth century.
Key words: anthracology, recruitment, ecological succession
Resumo
Guarea guidonia (L.) Sleumer é uma espécie frequente em formações
secundárias iniciais e tardias do Maciço da Pedra Branca, RJ. O estudo
consistiu em transectos feitos em nove áreas com um total de 1,35 ha. Em uma
área de 60 anos de regeneração foi feita amostragem antracológica em antiga
carvoaria (início do século XX) por meio de sondagens de 0,04 m². Em função
da idade sucessional, a área basal dos trechos estudados variou entre 12,3 e
90,1 m²/ha. A análise antracológica feita em área onde hoje G. guidonia é
dominante sugere que a atividade carvoeira, que existiu no local há cerca de 60
anos, provocou grande redução na diversidade das outras espécies e aumento
1
Departamento de Geografia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rua Marquês de
S. Vicente, 225. CEP 22 453-900. Rio de Janeiro RJ. Autor para correspondência: rro@puc-rio.br
2
Gerência de Geoprocessamento e Estudos Ambientais, INEA-RJ
Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, Departamento de Antropologia, Museu Nacional,
UFRJ
3
PESQUISAS, BOTÂNICA Nº 64: 323-339 São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, 2013.
324
Oliveira, Solórzano, Sales, Beauclair & Scheel-Ybert.
da densidade de G. guidonia. Seu recrutamento foi observado somente na área
de 5 anos. Trata-se de espécie pioneira, que dificilmente germina em clareiras
naturais. A espécie apresenta preferência por ambientes úmidos (fundos de
vales) e somente recruta em sol pleno ou com a abertura de grandes clareiras
(como para fabricação de carvão vegetal). Os exemplares encontrados em
áreas em estágio avançado de regeneração tiveram sua densidade reduzida e
a dominância aumentada em função dos usos anteriores. O fato de se tratar de
uma espécie longeva (pode chegar a mais de 150 anos) contribui para que se
possa conhecer e mapear áreas utilizadas a partir de meados do século XIX.
Palavras-chave: antracologia, recrutamento, sucessão ecológica
Introdução
A Ecologia Histórica constitui um campo relativamente recente de
pesquisa interdisciplinar, que busca compreender as dimensões temporais e
espaciais das relações das sociedades humanas com os ambientes, assim
como os efeitos globais desses relacionamentos (Balée, 2006). Embora tanto a
Ecologia Histórica como a História Ambiental enfatizem estudos
interdisciplinares de longo prazo das relações homem/ambiente, a abordagem
da primeira difere da última ao priorizar o uso de dados de ciências naturais,
em vez de fontes históricas (Balée & Erickson, 2006). No entanto, estas duas
disciplinas têm como um dos principais referenciais teóricos e empíricos a
paisagem, aqui considerada como um documento histórico (Worster, 1991) e
interpretada como a manifestação material das relações entre os seres
humanos e o meio ambiente (Crumley, 1994).
Em uma perspectiva histórica é evidente que a paisagem que nos
chegou até hoje é produto das relações de populações passadas com o seu
ambiente. Neste particular é conveniente lembrar que não há como se
conceber os sistemas ecológicos como “naturais”, desconectados das
atividades humanas que se passaram em diversas escalas de tempo. Há,
portanto, a necessidade de se incluir o legado da atividade humana como parte
do enfoque ecológico nas investigações sobre a paisagem e, portanto, não se
limitar a interpretar a sua estrutura e funcionamento a partir de um ponto de
vista exclusivamente “natural” (García-Montiel, 2002). O legado dos distintos
usos históricos é formado por sucessivos territórios que se sobrepuseram, e
que acabaram por gerar uma paisagem modificada por usos diversificados.
Tais mosaicos constituem o paleoterritório - a espacialização das resultantes
ecológicas de usos passados dos ecossistemas por populações, os quais
deixam marcas visíveis na paisagem até a atualidade (Oliveira, 2008). O
estudo do impacto destes usos passados é relevante para o manejo da
paisagem e para a conservação da natureza (Nelle, 2003). Estudos
retrospectivos que procuram avaliar as paisagens em um contexto de
processos históricos de transformação podem alargar os horizontes de
interpretação, fornecendo informações como a avaliação de processos de
longa duração, documentar eventos raros ou extremos, examinar as respostas
do ecossistema a distintos modelos culturais ou, ainda, obter informações
ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES...
325
sobre condições atuais ou mudanças em curso nos ecossistemas (Foster et al.
2003).
A estrutura de um ecossistema, em uma escala ampla, é
predominantemente explicada pela variação no ambiente físico, assim como a
estrutura atual é fortemente influenciada por processos históricos (Kessler &
Kluge, 2008). São muitos os caminhos para se entender as respostas do
ecossistema a distintos regimes de perturbação. Por exemplo, o tamanho das
populações, a composição de espécies, assim como a presença e abundância
de árvores mortas podem ser utilizados como elementos diagnósticos.
Tamanhos uniformes nas árvores de dossel frequentemente indicam a
existência pretérita de um evento em larga escala, como a retirada de lenha ou
a ocorrência de severos distúrbios climáticos. Da mesma forma, a ausência de
uma ou mais classes de diâmetros de árvores também significa um distúrbio
ocorrido no passado ou persistente (Marks & Gardescu, 2001).
No processo da conversão de paisagens por populações humanas, o
carvão vegetal consiste em uma das principais evidências desta transformação.
Fragmentos de carvão, associados a outras evidências arqueológicas, indicam
episódios de queima intencional da vegetação por populações humanas ao
longo do Holoceno (Piperno et al., 1991; Rolland, 2004). A presença de
fragmentos de carvão está frequentemente associada à agricultura, desde os
seus primórdios (Mazoyer & Roudart, 2010). A análise de fogueiras domésticas
e de carvões dispersos em sedimentos arqueológicos também pode revelar
informações a respeito da obtenção de lenha por determinadas populações e
sobre o ambiente que as cerca (Scheel-Ybert, 2000, 2001). A antracologia
abrange o estudo e a interpretação dos restos de madeira carbonizados
(Scheel-Ybert et al., 1996). Este estudo é possível porque a estrutura
anatômica da madeira se preserva após a carbonização, o que permite realizar
a identificação taxonômica e inferir características da madeira e do ambiente.
Uma das atividades, em particular, que tem sido apontada como capaz
de causar mudanças significativas na paisagem é a produção de carvão.
Praticada desde a pré-história até o presente por uma diversidade de culturas,
consiste na derrubada e queima de áreas de floresta, muitas vezes por um
longo período e em uma área significativa, seguida da conversão da lenha em
carvão por meio da combustão abafada (Izard, 1992; Oliveira et al. 2011).
Assim, os vestígios de carvoarias constituem estruturas adequadas para a
reconstituição ambiental. A premissa básica que permite essa interpretação é a
coleta exaustiva e não seletiva da madeira, por parte dos carvoeiros, nas
adjacências da carvoaria. Embora algumas espécies possam ser mais
adequadas à produção de lenha, os carvoeiros costumam abater todas as
espécies lenhosas acessíveis nas proximidades da carvoaria, inclusive as que
são valorizadas para outros fins (Corrêa, 1933; Izard, 1992). A questão da
evolução da cobertura vegetal sob influência antrópica é inerente aos estudos
antracológicos destes sítios arqueológicos, que têm demonstrado o quanto as
paisagens atuais são produto da atividade humana, em decorrência do uso da
madeira ao longo dos séculos (Izard, 1992; Vernet, 1997).
326
Oliveira, Solórzano, Sales, Beauclair & Scheel-Ybert.
A presente contribuição tem como hipótese de trabalho a possibilidade
de que uma espécie extremamente comum na Mata Atlântica, a carrapeta
(Guarea guidonia (L.) Sleumer), tenha sua dinâmica populacional ligada a uma
conjunção de fatores que liga usos pretéritos a condicionantes abióticos.
Apresenta como objetivos: a) identificar padrões de distribuição populacional de
G. guidonia; b) verificar a relação de usos anteriores com as características das
suas populações ao longo do tempo e c) avaliar as condições abióticas
relacionadas ao recrutamento da espécie.
Materiais e métodos
Área de estudos: O Maciço da Pedra Branca está localizado na zona
oeste do município do Rio de Janeiro (figura 1). Apresenta-se com altitude
moderada (1.025 m no Pico da Pedra Branca, ponto culminante do município) e
vertentes escarpadas. O tipo climático é sub-úmido, com pouco ou nenhum
déficit de água, megatérmico, com calor uniformemente distribuído por todo o
ano, com pluviosidade de 1.215 mm anuais (Solórzano et al. 2012). A área
estudada é coberta por Floresta Ombrófila Densa Montana e Submontana
(IBGE, 2012), que se apresenta em estágios médio, avançado ou climáxico
(Cintra et al., 2011). Esta floresta forneceu lenha aos engenhos de cana da
região desde o século XVII. Em meados do século XIX iniciou-se um intenso
processo de produção de carvão vegetal nas encostas do Maciço da Pedra
Branca. A sua proximidade com a cidade do Rio de Janeiro foi responsável por
transformá-lo em um polo de fabricação de carvão. Sua produção era feita na
própria floresta, por meio da escavação de um platô localizado na encosta.
Tratava-se de uma atividade feita por ex-escravos ou escravos alforriados e o
carvão destinava-se ao crescente consumo na cidade do Rio de Janeiro.
Pesquisa feita nas encostas florestadas do Maciço da Pedra Branca
(Fraga & Oliveira, 2012) revelou em grande número ruínas de moradias,
possivelmente de ex-carvoeiros, e de antigas carvoarias. Este levantamento
encontra-se em andamento e atualmente o total é de 480 carvoarias e 47
ruínas de moradias dispersas no interior da floresta. No entanto, apesar do
grande desmatamento realizado pelos carvoeiros e lenhadores no final do
século XIX e início do século XX, a floresta retornou por meio da sucessão
ecológica que ocorreu após o desmatamento. Hoje, essas carvoarias e ruínas
estão praticamente irreconhecíveis, completamente tomadas pela floresta
densa, e a paisagem recompôs-se quase que inteiramente, apesar do uso
intenso do passado. Com relação à diversidade nas áreas onde ocorreu a
exploração de carvão, Freire (2010) encontrou um total de 350 espécies de
porte arbóreo/arbustivo em uma área de 0,96 ha. Nas mesmas áreas, a autora
encontrou uma proporção média de espécies em estágio inicial de sucessão
(pioneiras e secundárias iniciais) de 37%, sendo os demais 63% pertencentes
ao grupo das secundárias tardias e climáxicas, o que situa esta formação em
estágio avançado de regeneração. Solórzano et al. (2005) também descrevem
a mesma área como avançada sucessionalmente.
Características da espécie: Guarea guidonia (L.) Sleumer é uma
Meliaceae, conhecida comumente como carrapeta ou marinheiro. É uma
ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES...
327
espécie nativa brasileira, porém não é endêmica. É naturalmente encontrada
em diversos países da América Central e América do Sul, dentre os quais
Costa Rica, Cuba, Porto Rico, Panamá, Colômbia, Argentina e Brasil. Trata-se
de árvore perene, com uma copa espalhada e folhagem densa. Em algumas
situações pode atingir 25 metros de altura e até 1 metro de diâmetro. Suas
folhas são compostas medindo de 30-40 cm de comprimento, com 6-10 pares
de folíolos, de 15 a 20 cm (Weaver, 2000). A carrapeta é uma espécie que tem
crescimento rápido, mas é longeva, podendo chegar a 150 anos. Em relação
ao grupo sucessional, trata-se de espécie secundária inicial, segundo autores
como Ivanauskas et al. (2002) e Carvalho et al. (2009), sendo que a sua
germinação se dá apenas em áreas abertas, em condição de sol pleno ou com
uma leve sombra (Weaver, 2000). Nas florestas urbanas do Rio de Janeiro, a
mesma é uma espécie extremamente frequente. No Maciço da Pedra Branca
ocorre em distintas situações de orientação de encostas: tanto em vertentes
voltadas para o quadrante norte quanto sul (Freire, 2010). De acordo com
Solórzano et al. (2005), Guarea guidonia parece ser seletiva em relação à sua
posição topográfica. Estes autores encontraram em formações de cerca de 60
anos, uma densidade relativa da espécie de 53,5% em região de fundo de vale,
contra 0,7% no divisor de drenagem.
Procedimentos metodológicos: a partir de explorações preliminares da
vertente meridional do Maciço da Pedra Branca (encostas a montante dos
bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e Curicica), foram
selecionadas nove distintas áreas de ocorrência de Guarea guidonia (tabela 1).
Estas foram escolhidas a partir dos critérios de idade sucessional e de posição
topográfica na vertente florestada (fundo de vale, divisor de drenagem ou meia
encosta). As idades sucessionais das áreas foram estimadas por meio de
informações de antigos moradores, pela presença de vestígios arqueológicos
ou por características da vegetação de porte arbóreo. Na área climáxica não
foram encontrados quaisquer vestígios de usos anteriores. Os dados referentes
às áreas de 60 anos foram obtidos em levantamentos anteriores (Solórzano et
al. 2012).
Tabela 1 – Características gerais das áreas amostradas no Maciço da Pedra Branca.
área amostral
idade
posição topográfica
uso anterior
(m2)
estimada
5 anos
meia encosta
pasto
1.000
20 anos
meia encosta
plantação de banana
1.000
60 anos
divisor de drenagem
produção de carvão
2.500
60 anos
meia encosta
plantação de banana
2.500
60 anos
fundo de vale
produção de carvão
2.500
150 anos
meia encosta
produção de carvão
1.000
150 anos
fundo de vale
ruína de moradia
1.000
clímax local
fundo de vale
sem uso conhecido
1.000
clímax local
divisor de drenagem
sem uso conhecido
1.000
Em cada uma delas foram realizados transectos estabelecidos das
seguintes maneiras: a) onde existiam carvoarias os mesmos foram
328
Oliveira, Solórzano, Sales, Beauclair & Scheel-Ybert.
estabelecidos em forma de cruz com as dimensões de cada “braço” de 200 m x
10 m, totalizando 2.000 m² em cada e b) onde as mesmas não estavam
presentes, os transectos foram feitos em uma linha transversal à encosta de
400 x 10 m. Ao total foram inventariados 13.500 m² (1,35 ha). Em cada área
foram obtidos dados de altura, perímetro, porcentagem de árvores mortas e
densidade relativa de Guarea guidonia. O critério de inclusão foram os
indivíduos de porte arbóreo ou arbustivo com diâmetro à altura do peito (dap)
igual ou superior a 5 cm. No caso dos indivíduos de G. guidonia, o critério de
inclusão foi de 1,0 cm ao nível do solo. Neste caso, este subconjunto foi
analisado separadamente. Indivíduos de qualquer espécie, com troncos
múltiplos foram amostrados somente quando pelo menos uma das
ramificações possuía dap > 5,0 cm, e a área basal total do indivíduo foi
calculada pelo somatório das áreas basais de cada ramo. Seguindo-se as
indicações de Moro e Martins (2011), para cada área foram calculados os
seguintes parâmetros: densidade total, área basal total, densidade relativa e
dominância relativa de G. guidonia. Para se verificar a relação entre a
porcentagem de interceptação de luz e densidade das copas foi utilizado um
densiômetro esférico, que fornece a porcentagem de claros do dossel
(fabricante: Robert Lemmon, Forest Densiometers, EUA). Foram tomadas
quatro medidas (uma voltada para cada ponto cardeal), a cada 10 pontos
escolhidos aleatoriamente em duas das áreas amostrais (5 e 20 anos). Os
dados obtidos foram tratados com o teste não paramétrico U de Mann-Whitney
(Zar, 1998).
Aproximadamente no centro da área de fundo de vale com cerca de 60
anos de abandono encontra-se um platô onde se localizava uma carvoaria,
possivelmente no início do século XX. Nesta foi feita uma amostragem
antracológica por meio de sondagens de 0,04 m² realizadas no centro (1), na
periferia (2) e equidistante do centro e da margem do sítio (1), nas quais o
sedimento foi coletado em níveis artificiais de 5 cm, uma vez que não foi
possível observar alterações estratigráficas (figura 2). Todo o material recolhido
foi peneirado em campo em peneira de malha 4 mm. No laboratório, as
amostras foram flotadas, utilizando peneira com a mesma malha, para retirada
do sedimento e de pequenas raízes. A análise antracológica foi feita em
microscópico de luz refletida com campo claro e campo escuro, sendo
observados cortes frescos a partir da quebra manual dos fragmentos, de
acordo com os três planos fundamentais da madeira. A identificação
taxonômica foi feita através de comparação com descrições existentes na
literatura, com bancos de dados de antracologia (Scheel-Ybert et al., 2006) e
de anatomia da madeira (InsideWood, 2004) e com a coleção de referência de
madeiras carbonizadas (Antracoteca) do Laboratório de Arqueobotânica e
Paisagem do Museu Nacional, UFRJ.
No total, foram analisados 594 fragmentos, a partir das amostras dos
vários níveis de cada sondagem. Sua validação foi feita por testes estatísticos
(teste de análise de similaridades – ANOSIM; escalonamento multidimensional
não-métrico – NMDS; teste de Kolmogorov-Smirnov), que não identificaram
diferenças significativas entre as sondagens, permitindo considerá-las como
ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES...
329
oriundas de um evento único. Curvas de saturação e de Gini-Lorenz
demonstraram que o número de fragmentos de carvão analisados consiste
num efetivo amostral suficiente, sugerindo que a amostra é representativa do
trecho de Mata Atlântica do qual se originou (Scheel-Ybert, 2005). Sendo
assim, as frequências de cada táxon identificado são consideradas como
representativas da estrutura da vegetação passada.
Resultados e discussão
Aberturas no dossel - as medidas de claros de dossel feitas nas áreas
de 5 e 20 anos foram, respectivamente, de 24,5% e 8,9% e apresentaram
diferenças significativas entre a luz que potencialmente chega ao solo (Teste U
de Mann-Whitney, p<0,001) (tabela 1). Foi observado o recrutamento (ou seja,
a existência de plântulas e de indivíduos em estágio juvenil) de Guarea
guidonia apenas na área de 5 anos; nas demais áreas não foi encontrada a
ocorrência de indivíduos com diâmetro (dap) inferior a 5 cm. Assim pode-se
depreender que o recrutamento de G. guidonia se dá apenas em condições de
luz no solo, característica de áreas pioneira ou secundária inicial, de acordo
com os testes de germinação realizados por Weaver (2000) e a classificação
sucessional proposta por Ivanauskas et al. (2002) e Carvalho et al. (2009).
Tabela 1: Percentual de aberturas de dossel feitas nas áreas de 5 e 20 anos no Maciço da Pedra
Branca (n= 40).
área de 5 anos
área de 20 anos
% de claros (média)
24,5
8,9
desvio padrão
8,5
2,7
coef. de variação (%)
34,6
30,3
Aspectos estruturais - com relação à estrutura (tabela 2), os maiores
valores de densidade e área basal total foram encontrados nas áreas
climáxicas, respectivamente 2.190 ind./ ha na área de divisor de drenagem e
90,1 m²/ha no fundo de vale. Este último valor está próximo ou superou os
encontrados em áreas climáxicas do Sudeste brasileiro (Kurtz & Araújo, 2000;
Borém & Ramos, 2001; Moreno et al., 2003). Os valores obtidos para as
demais áreas são compatíveis com aqueles encontrados para formações
secundárias de idades variáveis (Oliveira, 2002).
Os dados apresentados na tabela 2 referentes à densidade relativa e
dominância relativa de G. guidonia mostram diferenças significativas entre as
áreas estudadas. Nas áreas de 20 anos e 5 anos, a espécie ocorre, de maneira
geral, com elevada densidade e dominância relativas. No entanto, na área de
20 anos a densidade é menor do que na área de 5 anos, porém com uma
dominância mais elevada, indicando que os indivíduos de área de 20 anos
apresentam um porte maior. Esta característica segue a lógica de que a área
mais antiga apresenta indivíduos mais velhos e, assim, com maior diâmetro. A
área de 5 anos apresenta predominantemente indivíduos jovens, porém em
maior abundância. Foram encontrados alguns indivíduos de porte intermediário
nesta área de pasto abandonado, indicando que foram poupadas do corte,
sendo, portanto, árvores remanescentes. Estas podem ter sido poupadas pelo
seu tamanho de difícil remoção, servindo também para o sombreamento da
330
Oliveira, Solórzano, Sales, Beauclair & Scheel-Ybert.
área para o gado (Solórzano et al., 2012). Árvores remanescentes têm um
importante papel no processo de sucessão ecológica e de recolonização
arbórea de áreas agropastoris abandonadas, ao criar um ambiente favorável
para o estabelecimento de plântulas (Guevara et al., 1986; Carrière et al., 2002;
Solórzano et al., 2012).
Tabela 2: Descritores estruturais de áreas de ocorrência de Guarea guidonia e em áreas
climáxicas no Maciço da Pedra Branca, RJ (ME = meia encosta; FV = fundo de vale; DD = divisor
de drenagem).
Densidade
Dominância
Área basal
Densidade
Densidade
G. guidonia
relativa de
total
Área
total
relativa G.
dap ≤ 5 cm
G. guidonia
(m²/ha)
(ind./ha)
guidonia
(ind./ha)
5 anos (ME)
990
1.624
51,3%
12,3
11,9%
20 anos (ME)
770
0,0
31,2%
28.5
38,8%
60 anos (DD)
1.800
0,0
0,7%
26.23
1,3%
60 anos (ME)
1.244
0,0
2,0%
34.18
4,8%
60 anos (FV)
1.016
0,0
53,5%
25.33
45,1%
150 anos (ME)
1.320
0,0
1,9%
42.80
12,2%
150 anos (FV)
1.325
0,0
1,1%
37.79
5,2%
Clímax local (FV)
1.820
0,0
0,0%
90,1
0,0%
Clímax local (DD)
2.190
0,0
0,0%
33,1
0,0%
Cabe destacar que a única área que apresentou recrutamento de
plântulas e arvoretas de G. guidonia foi a área de 5 anos. Nesta área, em 1.000
m² foram encontrados 164 indivíduos com diâmetro inferior a 5 cm, o que
equivale a uma densidade de 1.624 ind./ ha. Nas demais áreas não foi
amostrado nenhum indivíduo abaixo de 5 cm de diâmetro, apenas indivíduos
arbóreos adultos, distribuídas em diversas classes diamétricas (Figura 2 a-h).
Nas três áreas de estágio intermediário de sucessão, com
aproximadamente 60 anos de idade, houve grande diferença nos valores de
densidade e dominância de G. guidonia. A área de fundo de vale foi a que
apresentou os maiores valores de densidade e dominância, apresentando mais
da metade dos indivíduos desta área e quase metade da área basal. Já as
áreas localizadas no divisor de drenagem e meia encosta apresentaram
valores muito inferiores quando comparadas à área de fundo de vale. Segundo
Lorenzi (1992), esta espécie é considerada uma espécie de floresta de galeria
por estar associada a fundo de vales úmidos. Segundo Weaver (2000), esta
espécie se encontra em encostas úmidas, planícies bem irrigadas e em
margens de rios em altitude de 180 a 300 m da América Central. Portanto, as
áreas de fundo de vale apresentam melhores condições para abrigar esta
espécie, como é o caso da área de fundo de vale de 60 anos.
García-Montiel e Scatena (1994) destacaram que G. guidonia
apresentou elevados valores de densidade e área basal nas suas parcelas
localizadas em áreas tanto de produção de carvão como áreas de fundo de
vale. Rivera e Aide (1998), também encontraram um alto valor de importância
(36% do total) em trechos de floresta secundária com uso passado de
plantação de café na floresta tropical úmida de Porto Rico. Estes autores
destacam a alta densidade e dominância desta espécie devido à grande
ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES...
331
quantidade de frutos produzidos, e pelo tipo de dispersão, feita por aves
(Siqueira, 2006). Eles destacam a capacidade desta espécie em aumentar a
capacidade fotossintética em resposta ao aumento de nitrogênio no solo
(Fernandez, 1997 apud Rivera e Aide, 1998). Podemos associar estes
resultados com os nossos dados, na medida em que a maior abundância desta
espécie é no fundo de vale da área de 60 anos, onde, segundo Solórzano et al.
(2012), se encontra uma população razoável de espécies de Leguminosae
(principalmente Piptadenia gonoacantha) que são potencialmente fixadoras de
nitrogênio.
Nas duas áreas que se encontram em estágios avançados de
sucessão (150 anos), G. guidonia ocorre em baixa densidade, porém com uma
dominância marcante. Assim, os poucos indivíduos destas duas áreas
apresentam um porte bastante elevado. Este fato indica que no passado esta
área apresentou clareiras que permitiram a entrada e desenvolvimento de
alguns indivíduos de G. guidonia, pois esta necessita de bastante luz para
germinar e crescer (Weaver, 2000). Estes indivíduos permaneceram nesta
comunidade ao longo de aproximadamente um século e meio, como um
vestígio de um uso pretérito de produção de carvão, evidenciado em amostras
do solo com fragmentos de carvão (figura 3). Provavelmente após o fim do ciclo
de vida destes indivíduos, G. guidonia será extinta localmente da comunidade,
já que não existem evidências de recrutamento. Esse fato pode ser observado
na comunidade clímax local, que não apresenta nenhum indivíduo adulto ou
em processo de recrutamento na sua comunidade.
Na área de cinco anos (figura 4a), a população de G. guidonia possui o
formato de “J” reverso, indicando uma população estável com substancial
quantidade de indivíduos recrutantes, com viabilidade de permanecer no
sistema por largo período. Assim, é possível observar uma alta taxa de
recrutamento de G. guidonia, com uma grande quantidade de indivíduos na
primeira classe diamétrica (5-10 cm), assim como em relação aos indivíduos
com dap ≤ 5 cm. O fato desta espécie estar recrutando indica que ela encontra
as condições para germinar e se desenvolver nesta área, com sol pleno e
clareiras. Esta população está na fase inicial do ciclo sucessional, com muitos
indivíduos jovens e poucos adultos, mas se encaminhado para a fase
climáxica, que deverá ser atingida em algumas décadas, caso não ocorram
futuras alterações ambientais.
Contrastando com a área discutida acima, na área de 20 anos (Figura
4b) observamos um número relativamente baixo de indivíduos em todas as
classes de diâmetro. Isso demonstra que G. guidonia já não encontra
condições para a germinação e desenvolvimento, o que é evidenciado pela
baixa quantidade de indivíduos na classe de 5-10 cm (10 indivíduos), e pela
inexistência de indivíduos com dap ≤ 5 cm. Assim, com 20 anos e localizada
topograficamente em meia encosta, G. guidonia está próximo a uma fase mais
avançada do seu ciclo de vida, porém com baixa densidade de indivíduos
adultos. Essa baixa densidade pode estar relacionada ao fato da área não ser
um ambiente de fundo de vale e de maior umidade, onde a espécie encontra
melhores condições para o seu desenvolvimento (Weaver, 2000).
332
Oliveira, Solórzano, Sales, Beauclair & Scheel-Ybert.
As áreas representadas nas Figuras 4c-e apresentam a mesma idade,
60 anos, no entanto com diferenças na posição topográfica: divisor de
drenagem (4c) e fundo de vale (4d). Estas diferenças topográficas evidenciam
uma clara preferência desta espécie por ambientes de fundo de vale (4d), onde
apresenta uma grande população estável, com muitos indivíduos jovens e
adultos, já num estágio sucessional maduro, enquanto na figura 4c foram
encontrados poucos indivíduos. Este fato novamente reforça a preferência de
G. guidonia por ambientes úmidos ribeirinhos e de fundo de vale. Ao mesmo
tempo, na área de fundo de vale foram encontrados 122 indivíduos da espécie,
o que é um número elevado quando comparado às outras duas áreas de 60
anos.
Nas duas áreas de 150 anos, de posição topográfica de média encosta
e fundo de vale (figuras 4e e 4f) foi encontrado um contingente reduzido de
indivíduos adultos. Isso indica que esta espécie, em algum momento no
passado, encontrou condições de alta luminosidade para germinar, se
estabelecer e desenvolver. O fato de ainda encontrarmos alguns poucos
indivíduos de G. guidonia nessas áreas demonstra que é uma espécie longeva,
podendo chegar, como visto, a mais de 150 anos, necessitando de condição de
sol pleno e clareiras grandes na floresta para germinar e se desenvolver.
Nestas duas áreas foram encontradas ruínas e antigas carvoarias, confirmando
o uso anterior destes trechos da floresta (Oliveira et al., 2011). Evidentemente
esta espécie encontra-se no fim do seu ciclo nestas duas áreas, não mais
recrutando indivíduos. Como G. guidonia é uma espécie tipicamente
pioneira/secundária inicial ela não encontra espaço no ambiente competitivo de
um trecho de floresta climáxica, onde não foi encontrado nenhum exemplar
desta espécie (Fig. 4h). Nesse caso, a espécie foi completamente substituída.
A análise antracológica feita na área de 60 anos no fundo do vale
identificou uma estrutura semelhante à atual, mas com maior diversidade. Esta
análise identificou 113 tipos anatômicos (Beauclair, 2010), os quais apontam
para um número de espécies possivelmente ainda mais elevado, já que em
virtude das características da anatomia do lenho, cada táxon, geralmente
identificado ao nível de gênero ou família, pode conter mais de uma espécie.
Esta riqueza específica é bastante superior à que existe atualmente. Solórzano
et al. (2005) identificaram apenas 43 espécies em levantamento
fitossociológico recente feito na área. Este número é bastante inferior, inclusive,
a outras áreas de floresta secundária, mesmo apresentando uma estrutura
semelhante (e.g. Borém & Oliveira-Filho, 2002; Carvalho et al., 2007).
Apesar da riqueza, os tipos mais frequentes na amostragem
antracológica correspondem a espécies pioneiras (e.g. Cecropia cf. glaziovii,
Tibouchina sp.). Estes resultados, associados às estimativas de diâmetro
mínimo das árvores queimadas, sugerem que o trecho de floresta explorado
provavelmente correspondia a um estágio sucessional inicial a médio. O perfil
encontrado para a distribuição dos fragmentos pelas classes de diâmetro é
semelhante ao tipo capoeira, descrito por Nelle (2003).
ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES...
333
Conclusões
No presente estudo constatou-se que Guarea guidonia é uma espécie
com características pioneiras, não sendo observada regenerando em clareiras
naturais ou recrutando dentro de trechos mais preservados da floresta
ombrófila densa submontana do Maciço da Pedra Branca. Confirmamos que
esta espécie apresenta preferência por ambientes úmidos (fundos de vales), e
somente recruta em sol pleno ou com a abertura de grandes clareiras (para fins
de uso do solo diversificado: plantação de banana, pasto, produção de carvão
vegetal etc.). No entanto, apesar de aqui ser classificada como espécie
pioneira e de crescimento rápido, é longeva, podendo chegar a mais de 150
anos. Os exemplares remanescentes de grande porte e encontrados em baixas
densidades indicam grande possibilidade de terem se desenvolvido a partir da
abertura de clareiras artificiais, fruto da atividade de exploração de carvão no
século XIX ou roças de subsistência.
A análise antracológica de carvoaria existente em área onde hoje a
espécie é dominante evidenciou que esta atividade provocou grande redução
na diversidade das outras espécies e aumento de sua densidade. Assim,
Guarea guidonia pode ser apontado como uma espécie indicadora do histórico
de intervenção do homem sobre o ambiente florestado. O fato de se tratar de
uma espécie longeva contribui para que se possa conhecer e mapear áreas
utilizadas a partir de meados do século XIX, inclusive auxiliando no processo
de encontrar antigas carvoarias na paisagem florestada do Maciço da Pedra
Branca.
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Figura 1: Localização das áreas amostrais no Maciço da Pedra Branca, Rio de Janeiro.
Figura 2 – Sondagem para amostragem antracológica em antiga carvoaria localizada em fundo de
vale no Maciço da Pedra Branca, RJ.
338
Oliveira, Solórzano, Sales, Beauclair & Scheel-Ybert.
Figura 3 – Exemplar adulto de Guarea guidonia em área de regeneração de 150 anos.
ECOLOGIA HISTÓRICA DE POPULAÇÕES...
(a)
339
(b)
(c)
Figura 4 a-f: (a) área de 5 anos; (b) área de 20 anos (ME); (c) área de 60 anos (DD); (d) área de
60 anos (FV); (e) área de 150 anos (FV); (f) área de 150 anos (ME); DD: divisor de drenagem; FV:
fundo de vale: ME: meia encosta.